AS CANGACEIRAS

É desde o período primevo da história, juntamente ao surgimento da agricultura (cerca de 10.000 a.C.), que o sistema do patriarcado acompanha as organizações sociais. Juntamente a essa maneira de viver, ou por consequência desta, surge a tão arraigada ideia de superioridade masculina e fraqueza feminina, mito que vem sendo desconstruído por meio de ativismos feministas que rendem grandes nomes como Simone de Beauvoir, Frida Kahlo, Malala Yousafzai, Anita Garibaldi e diversas outras mulheres que fizeram e fazem história ao redor do mundo.

Apesar das mulheres participarem ativamente do processo de construção da história desde muito antes do século XX (isto é, no ápice do Cangaço), durante este período as cangaceiras ainda não eram reconhecidas da mesma forma que os homens que compuseram o movimento. A Maria Bonita, por exemplo, apesar de ser considerada uma musa feminista por algumas pessoas na atualidade, não era vista com bons olhos por grande parte daquela sociedade novecentista, marcada pelo androcentrismo.

Lampião, Maria Bonita, o fotógrafo Benjamin Abrahão e outros cangaceiros, 1936. Sertão nordestino, nas proximidades do rio São Francisco. Disponível em: http://brasilianafotografica.bn.br/?tag=maria-bonita

Obras literárias, visuais, audiovisuais e de outras vertentes da arte foram produzidas com o intuito de enaltecer a figura feminina no Cangaço. A jornalista e escritora Adriana Negreiros, por outro lado, contrapõe tal visão ao escrever o livro “Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço”, onde defende que “uma visão romântica do cangaço não é compatível com um momento em que discutimos feminicídio”, tendo em vista que as mulheres eram mantidas em coitos, a fim de fugir da polícia e realizar tarefas domésticas para seus maridos.

Coito, esconderijo de confiança dos cangaceiros. Foto: Benjamin Abrahão. Disponível em: https://ceert.org.br/noticias/historia-cultura-arte/23872/em-biografia-de-maria-bonita-adriana-negreiros-conta-a-historia-do-cangaco-do-ponto-de-vista-das-mulheres-do-bando-de-lampiao-e-resgata-imagens-historicas-do-fotografo-benjamim-abrahao

Maria Bonita, apesar de ter escolhido abandonar sua antiga vida para viver ao lado do seu grande amor e, dessa forma, demonstrar coragem e liberdade de escolha, ainda era submissa e realizava tarefas ditas "femininas" – como cuidar da casa e do marido. Além disso, ela foi uma das poucas que tiveram capacidade de escolher seu modo de vida, pois a maioria das mulheres que viveram no cangaço foi vítima de sequestros e ameaças no auge de sua adolescência, fazendo com que vivessem vidas que não desejavam.

Dentre as mulheres que não tiveram a liberdade de escolher seu caminho, temos Dadá, companheira do cangaceiro conhecido como “Corisco” ou “Diabo Louro”, que aos 12 anos de idade foi levada para acompanhá-lo em sua trajetória nômade no interior nordestino. Mesmo tendo sido levada tão nova, ela era também uma das únicas mulheres a ter liberdade de manusear as armas, tarefa tão comumente feita pelos homens. Dadá foi símbolo de luta feminina, apesar de ainda sofrer com a repressão machista do período, e inspirou filmes.

Na mídia, as mulheres cangaceiras não tinham espaço e nem vez. Os escritores, cronistas e jornalistas tiravam a visibilidade do ser feminino dentro do movimento de "banditismo" e se limitavam a descrição das mulheres apenas por suas características físicas, como ainda ocorre hoje em dia. O papel feminino no cangaço, para os homens do período, não passava da responsabilidade de cuidar dos seus companheiros e satisfazê-los.

“A mulé de Lampião
É faceira e é bonita
Cada cacho de cabelo
Tem cinco laços de fita"

O trecho de poema que inicia o capítulo doze do livro "Maria Bonita: Sexo, violência e mulheres no cangaço", de Adriana Negreiros, foi criado pelas próprias cangaceiras e evidenciam como a beleza da mulher já era um expoente importante no período. É perceptível, ainda, que a expectativa que se cultivava sobre essas mulheres não se restringia apenas à estética e à apresentação, mas também ao comportamento, uma vez que o verbete "faceira", no segundo verso, significa mulher vaidosa, dengosa. Isto é, elas deviam mostrar-se dóceis e submetidas ao marido cangaceiro.

Foi somente após a morte de parte dessas mulheres e com o fim do Cangaço que elas começaram a ganhar visibilidade midiática. Ainda, com o crescimento do movimento feminista, estas viraram símbolo de resistência e força contra os ideais patriarcais.

Apesar de não terem tido tanto espaço na luta diretamente armada do Cangaço no Nordeste, as mulheres ainda foram personalidades importantíssimas dignas de admiração, já que, tendo sofrido violência física, sexual, psicológica e diversas outras formas de agressão entre os próprios homens do cangaço, é possível imaginar que a vida dessas mulheres foi, no mínimo, árdua.

Foi em 1938, mais especificamente no dia 28 de Julho, que o bando de Lampião foi surpreendido pela força policial do período. O assassinato de 11 cangaceiros e cangaceiras marcou o fim do Banditismo Social sertanejo e, ainda, as cabeças expostas dos mortos anunciou a derrota do grupo. Devido às ameaças e ao fato ocorrido com o Rei do Cangaço, outros bandos desistiram da vida cangaceira e, dessa forma, o movimento tomou fim no interior nordestino.

Inacinha, cangaceira que foi presa e baleada quando grávida de oito meses. Disponível: http://blogdomendesemendes.blogspot.com/2017/06/a-cangaceira-inacinha-depois-do-cangaco.html